|nº 131| Abr 08

CRÔNICAS
Em comemoração aos dez anos do PREVI Futuro, a Revista convidou os escritores Jair Ferreira dos Santos e Marcelo Torres para fazer textos sobre o tema “Década”. Veja, a seguir, as duas crônicas:

Décadas

Jóias do passado não raro têm brilho o bastante para provocar reflexos, ou mesmo reflexões, no presente. Um velho bolero do porto-riquenho Rafael Hernández, gravado por Emilinha Borba em 1951, começava com o verso: “Assim se passaram dez anos...”. Não é difícil imaginar a soma de queixas e angústias que um amor desesperado colocou nessas palavras, mas por que exatamente dez anos? Por que não oito ou 37? Há qualquer coisa de dramático e fatal, como aliás nos próprios boleros, nesse número, sobretudo quando se trata do tempo. Ele soa um limite para o sofrimento ou a humilhação do desejo, mas isso não é tudo; se é limite, é também completude, e promove a jubilação, os festejos para as histórias felizes, fazendo-se plataforma para sua repetição.
Há sem dúvida ressonâncias humanas na idéia de década. Se um ano não é muito, em termos de experiência, e um século é grandeza para poucos, a década parece oferecer o intervalo adequado para a aprendizagem, o julgamento, a revisão de longo prazo, que é por onde passam as linhas mestras do nosso enredo. Além disso, ela é móvel, livre, não se restringe às viradas previstas nos calendários. Cada um ou cada instituição podem estabelecer quantas quiserem, acrescentando dez anos a qualquer data. Com isso personalizamos as décadas e, do nascimento de um filho ao abalo dos primeiros cabelos brancos, as efemérides pessoais apõem nossa assinatura no imenso e anônimo volume de vida que elas contêm. Não é esta uma razão a mais para as festas onde reencontramos a turma do colégio ou comemoramos 30, 50 anos?
Aqui é bom observar o quanto as dezenas são conveniências da memória. Que pressentindo o próprio esmaecimento, apela para os blocos decenais a fim de que os fatos importantes sejam relembrados e localizados sem confusão. São escaninhos onde os indivíduos, como as nações, guardam as lembranças mais caras, as lições mais duras. É por aí que as décadas recebem adjetivos glamurizantes: são, quem não ouviu falar?, os agitados anos 1920, do jazz e das melindrosas, para os americanos, ou os anos dourados, com a bossa-nova, para os brasileiros entre 1950-59. É por aí, igualmente, que seu clima, sua contribuição acabam sendo julgados: a bomba atômica simplesmente condenou, se não satanizou, a década de 1940, enquanto a música pop e o movimento hippie foram emblemas da alegria que contagiou a de 1960, sem esquecer como as crises financeiras e a clonagem da ovelha Dolly temperaram a de 1990.
Essas muitas implicações da palavra sugerem uma filologia sinuosa, em contraste com sua etimologia quase simplória – do grego dekas, através do latim decadis. Se hoje a década atua no paralelo, isto é, fora dos calendários, servindo basicamente às estatísticas e aos estudos socioeconômicos, nem sempre foi assim. Os gregos antigos dividiam o mês em três décadas (de dias), critério adotado milênios depois pela Revolução Francesa para abolir a semana. Já os romanos optaram por aplicar o termo à organização dos livros, conforme se vê nas Décadas do historiador Tito Lívio, significando tanto a divisão decimal dos capítulos quanto a decenal dos períodos abrangidos, esquema retomado no Renascimento português pelo cronista João de Barros.
Não menos relevante, ainda filologicamente, é a inspiração mágica do dez em diferentes tradições esotéricas. As três décadas gregas têm o dedo da fé numérica dos pitagóricos. Seu imaginário, ligado ao todo, à perfeição, não poupa alusões à divindade, ao infinito, à energia perene, ao eterno retorno, no oriente como no ocidente. O mais prestigiado dos números redondos na certa extrai sua sedução de uma maior compatibilidade com as fases e a duração da vida humana, que tem nele uma unidade ultra-eficiente. Afinal, quando somos apresentados a uma pessoa, procuramos situar sua idade em faixas de dez anos para dar-lhe este ou aquele tratamento.
A década é portanto uma medida extra-oficial, um guia, um artifício da memória, uma sabedoria dos longos lapsos com que nos movemos no mistério do tempo, contra o qual muito filósofo trincou o hipotálamo. Mas o que medem as décadas? Talvez elas sejam um índice seguro de maturação. Valores, projetos, entidades que não resistem a uma dezena de anos têm conosco menos conceito. Seu horizonte distante favorece a decantação do melhor, sendo um crivo para iniciativas diversas, do casório às ações solidárias. E numa época em que tudo, inclusive o tempo, parece acelerar-se, elas se tornam um fator de ponderação, uma advertência contra a velocidade e o imediatismo sem metas. O fim de uma década quase sempre nos remete à sua fugacidade, mas no mesmo movimento nos abre para a lenta jornada da que nasce, a importância de sorvê-la sem atropelo. A afirmação e a celebração da vida são gestos pacientes. Não encontramos outra mensagem, por exemplo, na nobreza das grandes árvores, nos amores verdadeiros e nos boleros, sempre vagarosos e lúcidos, como o “Dez anos” cantado por Emilinha Borba.

Foi em 1998

Uma década é uma vida. Mas também parece que passa num piscar de olhos.
Você olha e, vapt!, lá se vão dias, meses, anos. “Parece que foi ontem”, dizemos, ao olharmos pelo retrovisor do tempo.
Tudo, tudo, tudo que aconteceu com a gente, principalmente as coisas boas, a gente suspira um pouco, dá aquele sorrisinho e fala: “É, parece que foi ontem”. Porque, como se diz, recordar é viver.
Outro dia vi a Xuxa falar sobre a chegada de Sasha, nascida em 1998: “Parece que foi ontem”, ela disse. Oh, quase chorei. Emocionado, espremi os miolos e pensei em 1998 e coisas que aconteceram naquele ano.
O Brasil perdeu a copa para um tal de Zidane, lembra? Botamos a culpa no Ronaldo, que na hora do vamovê teve um fenômeno, um piripaque, e foi o pivô do revés. Ali, começávamos a usar o verbo amarelar...
Lembro que em 1998 choramos a partida de Lúcio Costa, Sinatra, Tim Maia e Nélson Gonçalves. Mas vibramos com Saramago, nosso irmão das letras, que ganhou o Prêmio Nobel de Literatura.
Sim, faz dez anos que nasceu um tal de Google, esse que hoje é o pai nosso de todo dia, o pai dos burros. Ah!, sim, foi naquele mesmo ano que a Microsoft lançou o sistema operativo Windows 98, lembra?
Se 1968 foi o ano que não terminou, parece que 1998 foi o ano em que tudo começou. Sim, faz dez anos que foi aprovado nos Isteites um remedinho para a impotência sexual, o Viagra, essa pilulazinha que levanta até defunto.
É, meu irmão, dez anos não são dez meses nem dez dias. Eu olho para trás e me vejo, em 1998, ganhando uma promoçãozinha no BB. Há dez anos eu estava com dez anos de Banco. E virava AP10, feliz, felicíssimo.
Pois é, só com dez anos de Banco é que eu fui chegar à Superintendência do BB na Bahia. Antes, trabalhara três anos em agência do interior (longe de tudo e de estudo) e seis anos em Cesec (carregando malote, somando papéis).
Não me refiro a isso como algo negativo. Ao contrário, são lições, trajetórias, aprendizados. Uma década é uma vida. Você olha para trás e vê o quanto mudou o mundo, como está diferente o seu país, como é outra a sua empresa.
Nesses dez anos, eu andei, corri, tropecei, caí, chorei, levantei, sacudi a poeira, dei umas voltinhas por cima e pelos lados, sorri (porque estava sendo filmado) e rogo ao homem lá de cima que me dê umas dez decadazinhas de vida.
Como dizia Gonzaguinha, “ninguém quer a morte, só saúde e sorte”. Por quê? Ora, meu velho, é porque a vida é um grande barato. Os pessimistas, esses chatos de plantão, é que acham tudo caro.